terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Himilco navega o Mar do Norte

O primeiro explorador dos mares setentrionais que se tem notícia foi o capitão cartaginês Himilco. A tradição a respeito da viagem de Himilco se deve a apenas dois autores latinos, Plinio o Velho e Avieno. Plínio o Velho (23-79 d.C.) faz a primeira referência a Himilco em uma lista de exploradores da costa africana[1], ao lado do cartaginês Hanno (irmão de Himilco, da família dos Magônides[2]), do selêucida Eudóxo de Cízico e do romano Gaio César. A referência seguinte é só duas linhas mais extensa:[3]

“Quando a força de Cartago floresceu, Hanno navegou de Cádiz para a extremidade da Arábia, e publicou a memória de sua viagem, como fez Himilco quando foi enviado pela mesma época para explorar outras costas da Europa.”

Plínio não se estende além disso. Pouco mais de dois séculos depois, em 350 d.C., o aristocrata romano Rufus Festus Avieno escreveu um poema intitulado Ora marítima, dedicado a um certo Probo, que não sabemos se é um seu parente e amigo Sextus Petronius Probo, cônsul em 371, ou o filho de Sextus, Anitius Ptronius Probo, também cônsul, em 406. O Ora Maritima é dedicado a descrever a geografia da costa da Europa além de Gibraltar.
A primeira descrição geográfica de Avieno vai dos verso 80 até o 98, depois de um longo preâmbulo cheio de conselhos ao destinatário do poema, é um roteiro geral da costa desde as Colunas de Hércules até as ilhas do “estanho e do chumbo”. A primeira coisa visível eram o monte Ábila, na Europa, e o monte Calpe, na África (as Colunas de Hércules), depois o entreposto comercial cartaginês de Gadir (que Avieno confunde com Tartessos, o porto do reino rival dos cartagineses no Atlântico), em seguida um grande penhasco chamado Oestrimnis, após o que vem o largo Golfo Oestrimnicus e finalmente as Ilhas Oestrimnides, as ilhas ricas em estanho e chumbo.
Oestrimnis, Oestrimnícus, Oestrimnides são nomes latinos que indicam a extremidade, o limite do mundo, a Finisterra, a Finlândia, as Ilhas do Norte, colocadas no fim do mundo. Os geógrafos antigos deram os nomes desses lugares apenas por convicção de que não havia nada além. As Ilhas Oestrimnides eram as Cassitérides, o grupo de ilhas além do promontório da Cornualha, nas Scily. Das Cassiterides até a costa da Irlanda (a Ilha Sagrada), segundo Avieno, um navio cartaginês consumiria dois dias de navegação. De Gibraltar até a as praias mais distantes rumo ao norte pela costa da Irlanda, a navegação consumiria quatro meses. Avieno consome versos mostrando como essa navegação seria perigosa: um mar plano, sem costas à vista, com calmarias desesperadoras que deixariam os navios dias parados, com grande extensões de algas que prendem as naves e limitam a ação dos remos, baixios que ameaçam encalhar os navios e os forçam a serpentear por entre monstros marinhos que nadam à volta dos navios...

Périplo de Himilco às Scilly, as Oestrimnides,
as lendárias "Ilhas do estanho"

De fato, o oceano além de Gibraltar realmente causava temores. O nome “Mediterrâneo” significa “entre terras”. Por imenso que seja, o Mediterrâneo está cercado por terra, como um lago. Isso resulta em pouca maré, ondas baixas, correntes fracas e um regime de ventos bastante cadenciado. O mesmo não ocorre no oceano. Quando as primeiras navegações fenícias alcançaram o Oceano Atlântico, encontraram condições climáticas, regime de ventos, correntes, maré e ondas que exigia muito mais do navio e da tripulação. Durante o ano, todos os ventos sopram do norte ou noroeste – no inverno podem vir de nordeste – e sua força pode ser de quatro nós durante o dia (19-26 km/h) ou dois nós de madrugada (7-12 km/h), mas pode vir a alcançar até seis ou sete nós (36-54 km/h). Hesíodo, o antigo poeta grego, em sua obra Os trabalhos e os dias dedica muitos versos à navegação (segundo a tradição ele herdou uma empresa marítima de seu pai) e é por causa desses versos que sabemos que os povos antigos sabiam que a melhor época para navegar eram os cinqüenta dias antes da “queda das Plêiades”, isto é, de fins de julho a meados de setembro. Nesse período, a frente polar mantém-se até o paralelo 60°N, congelando apenas o norte da Escócia, e deixando a Corrente do Golfo aquecer as águas do Atlântico entre o sul da Irlanda e Gibraltar.
A referência a Himilco no Ora Maritima ocorre em três passagens (versos 117-129, 375-389 e 402-413), sempre com o mesmo formato: o testemunho de Himilco corrobora a narração de uma difícil navegação entre Gadir e as Ilhas do Estanho.

visão que Himilco teve das Scilly, enevoadas, frias, úmidas,
batidas por ventos gelados que viram chuva, vindos do pólo.
Na imagem vê-se na névoa a moderna torre do farol.

     O que Avieno nos conta daquilo que Himilco viu? Que nas Ilhas do estanho, nas Oestremnides, habita um povo muito forte, portentoso, habilidoso, vigoroso e entregue a um ativo comércio de minérios. Que esse povo não sabe construir navios de madeira, mas que fazem grandes botes de pele e couro e que mostram grande coragem em enfrentar o oceano nesses barcos. Além das Oestremnides vivem os hiernos, o povo da Irlanda e mais além os albiones, os habitantes da Grã-Bretanha.




[1] PLÍNIO o Velho, História Natural, 1.5.
[2] ROLLER, D. W.; [2006], Through the pillars of Herakles: Greco-Roman exploration of the Atlantic, Routledge, NY, p.27.
[3] PLÍNIO o Velho, História Natural, 2.169a.